11.8.05

A família que escolhi


A maturidade me torna aristocrática como moçoilas dos romances de Jane Austen. Aquelas jovens que não faziam trabalhos domésticos, silvestres ou selvagens, mas tinham obrigações sociais de visitar doentes, escrever cartas aos amigos distantes, aborrecer-se em festinhas de batizado. Enquanto observo o envelhecimento de minha família e o conseqüente adoecimento de muitos parentes idosos, vejo crescer o número de compromissos a serem observados semanalmente: visitar meu tio velhinho, telefonar para minha madrinha, viúva de meu padrinho, para outro tio que adoeceu, para os tios e primos de Florianópolis, para os de Brasília e os das Gerais. A isso se somam os telefonemas a amigos que a gente pouco esbarra na própria cidade, com os quais marcamos encontros que nunca saem das agendas. Há também os amigos que freqüentamos virtualmente, por e-mail ou em comunidades da Internet, quase diariamente.
Telefonemas são mais solenes que e-mails e praticamente mataram o charme das cartas, que nas histórias de Austen eram algumas das principais atrações das reuniões sociais. Hoje, pelo Correio, só recebo contas e anúncios. Na época do Natal, vêm os cartões, que grudo nas soleiras de portas.
A relação mais longa que tive na vida foi epistolar. Durante 40 anos, dos 14 aos 44, mantive uma correspondência constante com um amigo bem mais velho, o seu Moura. Na verdade, 44 anos mais velho. Alguém que passou a fazer parte da família que escolhi. Amigo de meus pais desde a época em que eram solteiros, era desenhista e um dos melhores escritores de cartas que conheci. Mineiro, vivia em Belo Horizonte com a mulher e os três filhos.
Meu pai, que escrevia profissionalmente com maestria invejável, era o homem mais preguiçoso do mundo no que se referia a redigir uma carta para um amigo. Só tinha constância em escrever para meus avós, quando eu era pequena e telefone não dava sopa pelo Brasil. Havia até um ritual: ia-se a um posto telefônico e pedia-se a ligação para a telefonista. Meia hora depois, éramos chamados e entrávamos numa cabine para falar com a turma de Florianópolis.
Bom, o seu Moura amava escrever cartas para todos os amigos. Mamãe, às vezes, respondia por toda a família. Papai, mantinha-se quieto, rindo das ilustrações em bico-de-pena. Por causa de uma dessas cartas, aprendi o significado da expressão "torre de marfim", que era onde seu Moura havia desenhado uma caricatura de Papai. Decidi, então, mandar uma resposta para Minas. Três dias depois chegava a primeira das cartas semanais que trocamos por anos, com um imenso buquê de flores desenhado.
Louco por cinema dos anos 40, principalmente musicais com Bing Crosby e Fred Astaire, além de comédias com Cary Grant e James Stewart, encontrou em mim, outra cinemeira tarada, a correspondente ideal. A diferença de idade não parecia existir. Inventei que gostaria de assinar com um "nome de bang-bang", brincadeira de criança, criando o pseudônimo "Jimmy Boney", juntando Jesse James com William Boney, o Billy the Kid. Ele, prontamente, se transformou em Old Joe Moore. As duas famílias acompanhavam nossa vida epistolar, mandando recados, contando histórias através das cartas. Eventualmente, todos nos reuníamos, no Rio ou em Minas. Mas a exuberância dele era reprimida quando estávamos juntos. O tímido se soltava no papel, relatando a vida da família, a idas para o sítio de Lagoa Santa, o nascimento de netos e bisnetos, comemorando as vitórias do Atlético, comentando os filmes antigos que assistia no vídeo. Eu falava de namorados, festas, viagens, nascimento de filhos, crescimento de filhos, fim de casamento, perdas, ganhos. A medida que o tempo passava e minhas atribuições familiares aumentavam, meu entusiasmo de escriba arrefeceu. A correspondência se manteve, reduzida, até um ano atrás, quando lhe enviei a última carta antes que ele adoecesse. Na véspera de meu aniversário, morreu. Uma estranha coincidência: sua filha mais jovem falecera, alguns anos antes, no dia de meu aniversário.Seu Moura foi apenas um dos membros da família que escolhi. Seus filhos e netos continuam “parentes”, assim como minha família de Brasília, uma intrincada rede de padrinhos de casamento e batismo, mais próximos que muitos tios e primos “de sangue”. De meus pais herdei esses membros da “família” e ganhei “parentes” que passarei a meus filhos. Há um mês, fui tia-avó pela terceira vez, com o nascimento de Pietro, neto de meu compadre João. O pai de Pietro, Rafael, escolheu o nome do filho inspirado pelo sobrenome de minha amiga-irmã, Danúzia, sua ex-madrasta. As famílias mudam tanto como as formas de comunicação. Li uma vez que um fenômeno da vida urbana atual é a união de grupos de amigos como se fossem núcleos familiares. É uma das poucas inovações louváveis deste sempre admirável mundo novo.

6 comentários:

Anônimo disse...

Olguinha, eu bem sei que os amigos são mesmo uma extensão da nossa família. Ainda mais quando os pais estão longe. A propósito, muito boa essa história das cartas com o sr. Moura! Eu vivi muito pouco essa época de cartas, uma pena! Bjs

Unknown disse...

Amigos são a nova família, a que a gente constrói e conserva ao longo da vida.
Sabia que você faz parte da minha?
:o)))))))))))))))))))))))))))))))

Unknown disse...

Amigos são a nova família, a que a gente constrói e conserva ao longo da vida.
Sabia que você faz parte da minha?
:o)))))))))))))))))))))))))))))))

Olga de Mello disse...

Eu AMO ter você como parente, Rosa!
Mesmo você sendo uma rosa não gosta de samambaias enfeitando seu jardim...

Olga de Mello disse...

Liv,
Nem a época das sianinhas, né?
beijo!

Anônimo disse...

Adoro "Liv"!